ADVENTUS, QUE SENHOR ESPERAMOS? EM QUE DEUS ACREDITAMOS?

Assim como no ciclo da Páscoa, há um tempo de preparação para o Natal, o Advento. Importante essa relação com a Páscoa, que é centro gravitacional da fé cristã e do ano litúrgico. O texto de Lucas possui um paralelismo com os textos pascais: anjos, anúncio, gruta, envolto em panos. O Natal não é lido em si mesmo, sua importância e teologia está na Páscoa. Sem Páscoa não há vitória sobre o mal e as trevas. A vida não vencerá. Mas também não há Páscoa sem carne, sem encarnação, sem tocar a fragilidade da criação até a morte. É no Natal, a entrada de Deus na história humana, que a encarnação da Palavra Criadora assume em si a criação. É o ápice da Criação.Agora sim, a criação foi completada e cristificada.

No processo histórico, o Advento formou-se progressivamente ao longo de dois séculos, IV a VI. No fim do século IV e no decorrer do V, na Gália e na Espanha. Somente no século VI esta preparação chega a Roma. Lentamente os aspectos ascéticos vão sendo absorvidos pela celebração litúrgica. O termo Adventustem origem pagã e civil, designava à vinda, à visita de uma divindade, de um deus, do soberano, do rei, do imperador aos seus domínios. Os cristãos aplicaram este termo para designar a vinda de Cristo na carne e na glória final. Na perspectiva da vinda, perguntamo-nos: que Rei? Que Senhor? Que divindade esperamos? Vamos visitar o Salmo 72 (71) para visualizar o AdventusDomini.

No salmo, o desejo do orante, a súplica do fiel a Deus por um “rei que vem” ou que é coroado. Este salmo dedicado ao Rei Salomão expressa um ideal de Rei, e era utilizado nas cerimonias reais. O salmo é dirigido a Deus, reconhecendo-o como fonte do poder real, dispõe as funções do rei, deseja que o seu reinado justo chegue a todos os povos, invoca a bênção sob seu reinado justo, que é motivo de ação de graças ao Senhor. Enfatiza o reinado abençoado por Deus, o rei que governa segundo a Aliança, realiza a justiça em todo território – montes e colinas, que a paz é uma construção da justiça – paz pela justiça – ou ainda, como expressa o Salmo 85(84):“Já se aproxima a salvação dos seus fiéis, para que a Glória habite em nossa terra. Lealdade e Fidelidade se encontram, justiça e paz se beijam. Fidelidade brota da terra, justiça assoma do céu.” (Sl 85(84) 10-12). A glória de Deus é a fidelidade, a justiça e a paz. Construções coletivas que proporcionam um desenvolvimento humano em todas as suas potencialidades: sociais, individuais, espirituais e materiais. Justiça e paz não são conceitos abstratos, mas passam por ações de defesa da vida, como, ainda no salmo 72: “Que montes e colinas tragam ao povo paz pela justiça.Que defenda a gente oprimida, salve as famílias pobres esmague o opressor”.  Não só salvar as famílias pobres, que já seria de grande valia, mas também ir à raiz da opressão aos pobres, combatendo o opressor, aquele que sabota a justiça e paz e bebe “o sangue”, a vida dos pobres.

O salmista suplica ao Deus da Aliança que este “Rei que vem” possa reinar quanto dure o tempo, e este reino de justiça e paz não se restrinja ao seu povo, mas a todos os povos; que a opressão cesse em toda parte e que aos pobres e aos miseráveis faça-se a justiça. Por este reinado deve-se rezar e fazer ação de graças, pois diz o Sl 72(71): “Que dure em companhia do sol diante da lua, de idade em idade. Que domine de mar a mar, do Grande Rio até aos confins da terra. Que viva que lhe deemoouro de Sabá, que rezem por ele continuamente e todo dia o bendigam.” (Sl 72(71) 5.8.15). Este “Rei que vem” receba os tributos das nações (cf.Sl 72(71), 10-11), mas de forma muito destoante, não por ser um rei poderoso, não por seu poderio bélico ou por suas riquezasnem por suas conquistas. Talvez aqui se encontra a mais clara referência ao Rei Messias esperado, porque ele receberá livremente os tributos das nações e sua submissão, por causa de sua justiça e solidariedade com os pobres e desvalidos: “Porque ele liberta o indigente que clama e o pobre que não tem protetor. Ele tem compaixão do fraco e do indigente, e salva a vida dos indigentes. Ele os redime da astúcia e da violência, porque o sangue deles é precioso aos seus olhos.” (Sl 72(71), 12-14).

Este “Rei Messias que vem”, em resposta à súplica do povo ao Deus da Aliança, faz eco ao texto do Êxodo: “Eu vi a humilhação de meu povo no Egito e ouvi seu clamor por causa da dureza dos feitores. Sim, eu conheço seu sofrimento. Desci para livrá-los das mãos dos egípcios e fazê-los sair desta terra par uma terra boa e espaçosa.” (Ex 3,7). Um novo Moisés que conduz o povo para libertação de seus opressores e para uma terra para todo povo; o julgamento e a justiça são confiados a um filho de rei (Sl 72 1), um novo Davi, que governe com justiça e fidelidade a Aliança.

Após expor a expectativa deste “Rei que vem” instaurar Justiça e Paz universais, o salmista irrompe em bendição e louvor ao Deus da Aliança que tem compaixão do povo oprimido e vem libertá-lo do opressor e reconhecer a dignidade dos pobres e desvalidos: “Que seu nome seja eterno, diante do sol brote o seu nome. Que todos os povos o felicitem e o invoquem como bênção. Bendito o Senhor Deus de Israel, único que faz maravilhas! Bendito para sempre o seu nome glorioso que sua glória encha a terra! Amém! Amém!”(Sl 72(71) 17-19).

Revestidos e revestidas por uma lógica de novidade, não se pode negligenciar os sinais que são esperados de todos e todas nós. Quando nos colocamos prontamente disponíveis diante de uma espera tão afável e terna, também nos provocamos de que espera estamos falando ou, simplesmente, que novidade esperamos.  O Advento, o tempo da espera em esperançaque nos acalenta para celebrar a festa do “Rei que vem chegando”, que nos empurra para a construção e a reconstrução de um novo mundo, nos educa a um olhar novo. Imaginemos a força vigilante daqueles e daquelas que esperaram, como nós, a concretude do reino. Eles e elas ensaiaram e nos ensinaram o gostinho de sentir que a novidade que os pobres tanto esperam escutar já está bem perto de nós.

Em Ponte dos Carvalho, Pernambuco, entre os anos de 1960 e 1980, o querido Geraldo Leite Bastos, presbítero e artesão da música, junto com a sua comunidade orante, cantavam: “Muito suspira por ti, teu povo fiel, tua Israel…” e repetiam a cada lembrança que “O Santo Messias” vem vindo logo. Por fim, com uma força divina e através de uma melodia que lembra um canto de ninar, o povo suplicava: “Apressa-te em vir libertá-la, em vir salvá-la, bendito Senhor!”. Com todas as reverências à poesia de Geraldo Leite Bastos, esta obra encontra-se no Hinário Litúrgico da CNBB, sugestão de repertório para o Advento. Aprendemos com eles e elas a esperar com mais vontade e verdade o “Rei que vem chegando”. É a lógica do “faz escuro, mas eu canto” superando a lógica da escravidão e do reino da morte. Uma peça entre as tantas heranças que nossas mães e nossos pais na fé nos guardaram. Delas e deles recebemos muita sustância poética para a oração e para a luta, incluindo, é claro, os salmos e as cantigas, hinos, súplicas e agradecimentos, todos encontrados na Sagrada Escritura, frutos da experiência do povo com Deus. O desejo perene pela chegada de uma novidade. No Natal, um menino. No fim de tudo, um reino em plenitude: “reino da verdade e da vida, reino da santidade e da graça, reino de justiça, do amor e da paz”. (Prefácio da solenidade de Cristo Rei)

O desejo apressado pela chegada do Cristo, em nós e no mundo, é a base da nossa atitude espiritual no Advento. Ainda que muito difícil ter forças de esperanças em um Brasil marcado pelas dores da intolerância, do ódio gratuito e do flerte à ordem de opressão, corre em nosso corpo, em nossa mente e em nosso coração um sonho que é regado pela singeleza das gotas do orvalho,como cantamos: “Das alturas orvalhem os céus e as nuvens que chovam justiça, que a terra se abra ao amor e germine o Deus Salvador” (Versão e música: Reginaldo Veloso, refrão do salmo 84, ODC), eassimacaba sendo um imperativo para as nossas liturgias e orações, um pano de fundo que dá voz e clarão a esse desejo tão iminente: o de superar a dor e viver a libertação que vem de nosso Deus.

É possível compreender ocaminho de Jesus, que nós também caminhamos no ano litúrgico,como um trilhar no gerúndio, assumindo aquele gesto de ir fazendo o que se espera que no futuro seja. É a nova ideia de vigilância, oposta totalmente a de uma passividade arrogante de achar que logo tudo se resolve sem que coloquemos nossas mãos nas massas, elas que gritam e sentem as dores do hoje. Para elas, é tão difícil esperar quanto viver. E assim, nossas ações acabam sendo questionadas: esse é o modo que a comunidade de Jesus prepara sua chegada? O tempo da vinda de Jesus em nossa carne faz de nós uma comunidade que exala odores combinados e distintos. Ora nos movemos pela chegada dEle nas nossas fragilidades, em nossas condições; ora nos colocamos de pé, na entrada da porta, com luzeiros acesos, prontos e prontas para sair na construção do aqui, do agora e do já. Esse movimento que acontece dentro de nós, e que envaidece toda nossa comunidade de seguidores e seguidoras com um espírito mais vigilante que corretor, colabora com o nosso fazer no mundo, tornando todos e todas consistentes da participação ativa na concretude do que suplicamos no Advento.

Cabe a nós, amigos e amigas, um pedido. Que seja vindoura a profecia do Senhor que em Isaías nos disse: “Céus, gotejem lá de cima, e as nuvens chovam a justiça. Que a terra se abra e produza a salvação, e junto com ela brote a justiça” (Is 45,8). O desejo pela vinda do Cristo, o Deus-com-a-gente, o Emanuel esperado, implora e pede que se complete a salvação.

Autores:

Ismael Oliveira, leigo, graduando em Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Francisco Leiva Neves Carvalho, presbítero da Diocese de Iguatu. Vigário na paróquia São Francisco, na área pastoral Trussu

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